Quem é a herdeira do Walmart que financia protestos contra Trump?
Viúva bilionária rompe com tradição familiar de neutralidade em meio à escalada de violência política nos Estados Unidos

O mistério durou semanas. Páginas inteiras de jornais americanos de circulação nacional passaram a veicular, de uma hora para outra, anúncios convocando os cidadãos a “se defenderem contra agressões de ditadores” e participarem dos protestos “No Kings” pelo país, que aconteceram neste sábado (14).
Ainda não se sabe o valor pago pelas publicidades. Porém, na sexta-feira (12), o The Wall Street Journal revelou a identidade de quem assinou o cheque.
Trata-se de Christy Walton, herdeira do império Walmart, que aos 76 anos rompeu com décadas de discrição para se posicionar publicamente contra Donald Trump.
Sua decisão voltou os holofotes para uma das famílias mais ricas dos Estados Unidos, gerando tensões tanto dentro do clã quanto nos corredores corporativos da maior rede varejista do mundo.
Casada com John Walton, filho de Sam Walton, fundador das redes Walmart e Sam’s Club, a bilionária sempre preferiu viver à margem do império familiar.
Enquanto outros parentes se dedicavam aos negócios, Christy focou na filantropia e na rotina doméstica, criando os filhos longe do burburinho de Bentonville, Arkansas, onde fica a sede do Walmart.
A vida pacata começou a mudar de curso em 2005, atravessada por uma tragédia. Seu então marido morreu em um acidente, quando o ultraleve que ele pilotava caiu logo após a decolagem, em Wyoming, região montanhosa dos EUA, onde ela vive até hoje.
Viúva aos 55 anos e herdeira de uma fortuna estimada atualmente em US$ 18,8 bilhões, Christy se afastou ainda mais das aparições públicas. Por outro lado, alcançou um privilégio raro no universo dos super-ricos: liberdade total para seguir suas convicções.
Histórico de apoio bipartidário
Embora mais desconectada dos familiares do marido após sua morte, por muitos anos a bilionária manteve a tradição dos Walton de apoio bipartidário, realizando doações tanto para republicanos quanto democratas.
A partir de 2020, porém, o destino de suas contribuições passou a seguir em uma direção específica. Na época, doou mais de US$ 500.000 para o Lincoln Project. Foi o primeiro sinal de uma transformação pessoal da viúva.
Fundado um ano antes do generoso aporte de Christy, o Lincoln Project foi o principal grupo opositor a Trump em sua primeira campanha. E foi criado a partir de uma inusitada composição política, que reuniu veteranos republicanos contra o próprio partido.
Estruturado como comitê de ação política independente – o que significa que pode arrecadar recursos ilimitados e promover campanhas tanto favoráveis quanto contrárias a candidatos específicos -, em sua formação original o Lincoln Project reuniu estrategistas como Steve Schmidt, líder das campanhas de George W. Bush e John McCain, e Rick Wilson, consultor e autor de um livro intitulado Everything Trump Touches Dies (“Tudo o que Trump toca Morre”).
Desde então, a rotina reservada que evitava câmeras e microfones deu lugar ao agitado dia a dia de anfitriã de Christy, quando ela passou a abrir sua casa para uma série de eventos políticos, de reuniões com candidatos a jantares de arrecadação.
Em declaração ao The Wall Street Journal, uma fonte próxima à família afirmou que ela sempre foi uma mulher de convicções fortes. “O que mudou foi sua disposição em tornar essas convicções públicas”, explicou.
Publicados pela primeira vez em março deste ano e repetidos recentemente, os anúncios “No Kings” estamparam muitas das preocupações pessoais da bilionária sobre o futuro da democracia americana.
O anúncio “No Kings” traz um manifesto de declaração de princípios, enumerando oito compromissos que começam sempre com a palavra “nós” em letras maiúsculas.
“Nós honramos nossos compromissos e apoiamos nossos aliados, nós defendemos contra agressões de ditadores, nós cuidamos de veteranos e crianças”, diz o texto do anúncio, em uma lista de outras exaltações de valores como respeito aos vizinhos e parceiros comerciais e defesa de uma economia saudável e do Estado de Direito.
Na parte inferior, a comunicação assume um tom mais solene e direto: “Somos o povo dos Estados Unidos da América. A honra, a dignidade e a integridade do nosso país não estão à venda. Nosso governo é do povo, pelo povo, para o povo”, em uma mensagem que faz referência a Abraham Lincoln, presidente dos Estados Unidos entre 1861 e 1865 e um dos líderes mais celebrados na história política do país.
Sobrou para o Walmart
Os Waltons sempre cultivaram uma imagem de neutralidade política, focando seus investimentos em educação e causas sociais e evitando se envolver em polêmicas e controvérsias políticas.
Antes do episódio atual, somente Tom Walton, neto de Sam, ultrapassou a fronteira deste padrão, na defesa de direitos LGBTQIA+, em 2021. Nada, porém, que transformasse questões políticas pessoais em assunto de família.
Já após o mistério das publicidades ser descortinado, o Walmart viu-se obrigado a informar publicamente seu distanciamento da herdeira. E o timing não poderia ser pior para a corporação.
Donald Trump tem atacado diretamente a empresa, em declarações como a proferida em maio último, exigindo que o Walmart “engula as tarifas” em vez de repassar aumentos aos consumidores.
Uma tensão que escalou quando o atual CEO da organização, Douglas McMillon, alertou que as novas políticas comerciais forçariam altas de preços, provocando mais uma série de respostas furiosas do presidente norte-americano nas redes sociais.
“Os anúncios de Christy Walton não têm qualquer ligação com o Walmart nem o endossam”, disse a companhia por meio de um comunicado.
O desenrolar pós revelação provocou reações imediatas e polarizadas nas redes sociais. Alguns grupos organizaram pedidos de boicote ao Walmart, enquanto outros celebraram a coragem política da herdeira.
Sem reis, com violência
A escalada de violência política nos Estados Unidos – que culminou no assassinato da deputada estadual Melissa Hortman e seu marido, além dos ferimentos causados ao senador John Hoffman, atacados em sua residência em Minnesota – explica por que pessoas como Christy passaram a atuar de forma mais contundente na arena pública.
Já os protestos “No Kings” vêm como a resposta popular a um dos momentos mais tensos da história política recente dos EUA. Manifestações pacíficas foram programadas em mais de 2 mil cidades.
Não por acaso, na mesma data em que aconteceu um grande desfile militar em Washington, organizado por Trump para celebrar seus 79 anos e os 250 anos do Exército americano.
No lugar do “parabéns a você”, o ápice da festa de aniversário do presidente e do Exército foi a salva de 21 tiros de canhão seguida pelo hino dos Estados Unidos.
Fonte: Revista Exame