A caça aos peixes modificados para ‘brilhar no escuro’, que levou a multas acima de R$ 100 mil

O criador de peixes Yan Correa, de 23 anos, levou um susto ao receber, em março deste ano, a visita de uma equipe de fiscais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em sua loja de aquarismo (criação de peixes e outros organismos aquáticos), em Belo Horizonte (MG).
Ele havia inaugurado o estabelecimento em uma galeria da cidade no fim de 2024, após anos trabalhando em outras lojas e com um pequeno comércio online.
Além de ampliar o tempo com uma de suas paixões, seu objetivo era também guardar dinheiro para retomar a graduação em Biologia, que ele conta ter interrompido por falta de tempo e recursos.
Naquele dia da fiscalização, uma quarta-feira de pouco movimento, ele tinha decidido não abrir a loja. Mas recebeu uma ligação dizendo que um grupo de pessoas uniformizadas queria vê-lo no estabelecimento.
Em um primeiro momento, não teve qualquer receio. “Tranquilo, não tenho nada a esconder. Estou com a consciência limpa”, pensou.
Fiscais revistaram os aquários da loja, tiraram fotos e pediram notas fiscais do material que era vendido lá. O interesse deles era em um tipo de peixe específico.
Ao fiscalizar um aquário em que ele mantinha peixes do tipo paulistinha (também conhecido por zebrafish, por suas listras), as autoridades usaram uma lanterna com luz ultravioleta. Os peixes brilharam.
Era a confirmação que precisavam para autuar o estabelecimento. “Você está com um peixe ilegal. Isso é um peixe geneticamente modificado”, disseram os fiscais.
“Fiquei meio desesperado, comecei até a tremer”, lembra Yan.
Ele alegou que não fazia ideia de que esses peixes tinham qualquer tipo de modificação genética e que as notas fiscais da compra indicavam um nome de peixe comum, que ele vendia por R$ 2 cada.
“Eu compro, por semana, de seis fornecedores diferentes. Não tinha como eu saber”, justificou, em entrevista à BBC News Brasil.
O valor da multa foi de R$ 60 mil, além do embargo das atividades do empreendimento. “Pagar essa multa é fechar a empresa. Vender minha loja com tudo que eu tenho.” Yan pode recorrer da autuação recebida.
Crédito,Antonio Candido Aquarismo BrasilLegenda da foto,Yan Correa foi um dos autuados pelo Ibama por vender peixes fluorescentes
A caça aos ‘peixes que brilham’
A infração não foi a única naquela semana. Em março, uma operação do Ibama foi deflagrada em sete estados e no Distrito Federal, a maior já feita, e apreendeu mais de 58 mil peixes ornamentais geneticamente modificados.
No total, segundo o órgão, foram distribuídos 36 autos de infração, que totalizam R$ 2,38 milhões em multas.
A BBC News Brasil obteve acesso à lista de empresas e pessoas autuadas. Há empreendimentos que receberam mais de R$ 120 mil em multas após as fiscalizações. Caso, por exemplo, de um estabelecimento em Curitiba, que tinha mais de 3,2 mil espécimes. O valor da multa está associado, segundo o instituto, à gravidade da infração, não à quantidade de animais.
No Brasil, a criação ou comércio desse tipo de animal é crime, pode levar a multas e até à prisão por dois anos, segundo uma lei federal de 2005 sobre organismos geneticamente modificados. A proibição também acontece em outras regiões, como em países da União Europeia.
Esses peixes emitem fluorescência por meio da inserção de genes de anêmonas ou águas-vivas, o que lhes confere cores intensas e a capacidade de brilhar quando expostos à luz ultravioleta.
Esta técnica de modificação genética foi criada pela primeira vez há mais de duas décadas, por pesquisadores da Universidade Nacional de Singapura, e logo se tornou popular entre aquaristas. No exterior, o peixe é chamado GloFish, nome comercial, e pode ser comprado até mesmo pela internet.

‘É um hobby de contemplação’
“O aquarismo é um hobby de contemplação. A gente se senta na frente de nossos aquários e fica contemplando a interação entre os peixes, a beleza desses peixes”, explica o aquarista Antonio Candido, voz popular no setor, com mais de 120 mil inscritos em seu canal no Youtube.
“[Esse tipo de peixe modificado]atrai um público diferente. Atrai as crianças. As crianças estão entrando no aquarismo por causa da explosão de cores que esses peixes apresentam. Quanto mais cor no seu aquário, mais bonito.”
Para os lojistas, o lucro com a venda um peixe do tipo pode ser até três vezes maior do que a versão comum.
“O aquarismo funciona basicamente por novidades. Comerciantes sempre vão disponibilizar, de tempos em tempos, novas espécies. É algo cíclico e dinâmico”, diz o doutor em Ecologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador de peixes não nativos André Magalhães.

Magalhães conta que essa espécie de modificação genética foi criada com o objetivo inicial de detectar poluição ambiental. “Como ficaram muito bonitos e são fluorescentes, transformaram em pet.”
A suspeita de autoridades do Ibama é que matrizes desses peixes foram traficadas para o país e depois reproduzidas por aquicultores. Não há evidências de que a alteração genética para fins comerciais seja feita em território nacional.
A primeira constatação de que estes animais modificados estavam se espalhando pelo Brasil ocorreu em 2017, quando o Ibama os identificou em uma feira de distribuição de peixes ornamentais em Guarulhos (SP), lembra o coordenador de fiscalização de biodiversidade do instituto, Isaque Medeiros. “A partir daí, fizemos algumas ações pontuais e vimos que, de fato, estava começando a se difundir.”
Medeiros diz que o tipo de comerciante desses peixes varia. “Tinha um perfil de pessoas que cometia de maneira deliberada, sabia que era proibido, ilegal, mas achava que nunca ia ser fiscalizado e por isso fazia a comercialização. Mas também tinha pessoas que, de tão disseminada a comercialização, achavam que fazia parte do portfólio normal.”
O coordenador do Ibama ressalta que, constatado o ilícito, os agentes são obrigados a instaurar um processo administrativo de apuração de infração ambiental, mas que os autuados podem apresentar defesa.

‘Nosso desconhecimento é um problema’
O auto de infração do Ibama diz que a irregularidade cometida por Yan Correa foi “armazenar, para fins de comércio, dez espécimes de peixes ornamentais paulistinha geneticamente modificados, sem autorização expedida pela CTNBio — a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança”.
Yan diz que conhecia a comissão só de nome, que ouviu enquanto estava na graduação em Biologia, mas nem se lembrava exatamente de sua função.
Todo organismo geneticamente modificado que entra no Brasil obrigatoriamente tem de ser avaliado em termos de biossegurança. Essa comissão de especialistas, vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, é que faz tal análise.
A comissão é dividida em quatro áreas, a depender do tipo de risco avaliado: vegetal, ambiental, saúde humana e saúde animal.
O presidente da comissão, além de professor e pesquisador da Escola de Ciências da Saúde e da Vida da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) Leandro Astarita diz à BBC News Brasil que o risco principal é que esses peixes geneticamente modificados escapem e cheguem aos rios.
“O principal ponto é que, quando se coloca uma espécie exótica em um ambiente, ela pode não ter um predador natural”, explica Astarita.
“Ao encontrar condições ótimas de se multiplicar, ela vai competir com as espécies locais. Se tiver um comportamento agressivo ou outras vantagens adaptativas, vai acabar eliminando espécies nativas naquele ambiente”, continua.
“O Ibama faz o papel de fiscalizar e vigiar para que isso não ocorra e não aumente o número de espécies exóticas.”

Astarita diz ainda que ser geneticamente modificado é um agravante, porque esse peixe tem de ser avaliado para verificar se surgiu alguma característica indesejável, como a produção de toxinas ou mudanças no comportamento.
“A gente sabe que eles são criados em cativeiro, mas não há como garantir que eles não escapem. Não podemos dizer que esse peixe representa um perigo de biossegurança, porque não avaliamos esse animal. Nosso desconhecimento é um problema.”
O especialista diz que o caminho para a regulamentação seria que uma representante brasileira da empresa dos Estados Unidos que criou a modificação genética apresentasse um pedido à comissão de avaliação de risco, o que, segundo ele, não aconteceu até o momento.
A BBC News Brasil tentou contato com a empresa responsável pelos GloFish por meio de suas redes sociais e por e-mail, mas não obteve resposta.
Invasão biológica?

A invasão dos peixes modificados geneticamente ao meio ambiente não é apenas uma hipótese.
Um artigo científico publicado na revista Studies on Neotropical Fauna and Environment em fevereiro de 2022 identificou presença de duas populações reprodutivas desses animais em riachos da bacia do rio Paraíba do Sul, em Minas Gerais, no maior centro de aquicultura ornamental do Brasil. Os exemplares adultos foram encontrados já se reproduzindo.
O artigo é assinado pelos pesquisadores André Magalhães, Marcelo Brito e Luiz Silva.
Uma invasão biológica acontece em etapas. Primeiro, uma espécie não nativa é introduzida em um novo ambiente. Depois, se consegue sobreviver e se reproduzir, passa para a fase de estabelecimento.
A partir daí, pode começar a se espalhar pelo território — é a fase de dispersão. Se continuar avançando, pode gerar impactos ecológicos, como competir com espécies nativas ou até levá-las à extinção.
“Detectamos que esses peixes já estavam na fase de reprodução e que podem provavelmente avançar para a fase de estabelecimento [presença de espécimes jovens]”, explica Magalhães.
A equipe afirma no artigo que esses peixes podem ter escapado dos tanques de produção e sobrevivido graças à baixa abundância e diversidade de predadores de topo nativos na região e uso de recursos alimentares disponíveis.
Dentre as sugestões apresentadas no artigo estão evitar a fuga desses peixes por meio da instalação de dispositivos como telas e filtros nas saídas de águas dos tanques, além de programas de conscientização sobre animais transgênicos.
“Toda espécie não nativa, transgênica ou não, tem de ser estudada para saber os riscos que pode estar provocando quando introduzida em um ambiente”, diz Magalhães.
“Saímos de uma pandemia do coronavírus, provocada por uma espécie exótica de microorganismo originária da China. Todo ano centenas de prefeituras sofrem para conter epidemias de dengue, provocadas por um mosquito exótico, de origem africana.”
Um outro estudo, de 2015, publicado por um grupo de pesquisadores na revista científica Evolution, identificou que peixes machos selvagens superaram os transgênicos em comportamento agressivo e quantidade de filhotes gerados (2,5 vezes mais).
Além disso, ao pesquisar 18 populações (18,5 mil peixes adultos) por 15 gerações, o fenótipo (aparência) transgênico desapareceu.
“Isso já é um indício de que [a liberação] pode não ser tão danosa ao ambiente. Mas ainda assim, é somente um artigo. Teríamos de avaliar mais detalhadamente”, diz Astarita, do CTNBio.
‘As pessoas não têm informação’

O aquarista Antonio Candido tem criticado a operação do Ibama em vídeos no YouTube com dezenas de milhares de visualizações e comentários de apoio.
“Todos sabem que o peixe geneticamente modificado é proibido no Brasil”, diz ele àBBC News Brasil. “A legislação é bem clara.”
Ele diz, no entanto, o que chamou de falta de conscientização sobre o assunto antes de as multas terem sido aplicadas.
“As pessoas não têm informação sobre estudo de genética, é mais no empirismo. Elas não têm condições de identificar nem de separar os geneticamente modificados e evitar que pulem de um tanque para outro e se reproduzam entre si, contaminando toda a criação. Esses peixes eventualmente param no mercado.”
A legislação vigente diz que os agentes ambientes devem lavrar o auto de infração quando identificam a irregularidade. Os autuados, no entanto, podem apresentar recursos para revisão de seus casos antes da cobrança. Não há previsão para uma advertência, que só pode ser aplicada em casos de irregularidades consideradas leves.
Cândido acredita que a operação gerou “pânico” entre os comerciantes. “O Ibama está cumprindo o que determina a legislação. Mas a forma como isso ocorreu causou pânico”, afirma o influenciador.
“Há relatos de lojistas e piscicultores que despejaram animais geneticamente modificados na natureza. Então, a preocupação de evitar que esses animais cheguem na natureza pode ter surtido efeito contrário. Há relatos de pessoas que acabaram sacrificando seus peixes.”
O relato de desconhecimento do público é compartilhado pelo pesquisador André Magalhães, que faz estudos na região onde houve boa parte das multas, em Minas Gerais.
“Os piscicultores e os donos de lojas não têm noção desse conceito de espécie exótica, de invasões biológicas e os perigos envolvidos de se liberar espécies que não são nativas de uma região”, afirma Magalhães.
“É preciso um longo trabalho de educação ambiental. Se um aquarista compra algum desses transgênicos e decide por algum motivo que não os quer mais, acabam, pelo sentimento de dó ou compaixão, os descartando em lagoa urbana, em algum córrego perto e vez de sacrificar, que é o mais correto para evitar um ciclo de introduções a outros ambientes.”
A BBC News Brasil não encontrou casos concretos desse descarte. Se tiverem ocorrido, explica Isaque Medeiros, do Ibama, quem os despejou também pode ser multado.
“A gente tinha essa preocupação [do descarte]. Tanto é que buscamos reforçar que essa conduta de liberação de peixes no meio ambiente é muito mais grave do que a simples manutenção”, diz Medeiros.
“Se o Ibama constatar que alguém, de fato, de maneira deliberada, liberou esses peixes no meio ambiente, a infração é considerada gravíssima e aí a multa já começa em R$ 500 mil.”
Fonte: BBC News Brasil