Estudo investiga como cérebro processa mudanças musicais e dá sentido a elas
Atividade cerebral de músicos e não músicos ouvindo trechos de Stravinsky, Piazzolla e Dream Theater apresenta diferenças
A maneira como o cérebro ouve e entende uma obra musical é algo que tem atraído o interesse de neurocientistas. Se o órgão não fosse competente para dar sentido ao que se escuta, música nada mais seria do que uma sequência de sobreposições de sons aparentemente aleatórios. Em um artigo publicado nesta segunda (26) na revista científica PNAS, cientistas conseguiram avançar no entendimento da relação ancestral e profunda que o Homo sapiens tem com a música.
A ideia dos pesquisadores, da Universidade de Jyväskylä, na Finlândia, da Universidade Minerva, nos EUA, e da Universidade McGill, no Canadá, era entender exatamente o que acontece no cérebro, que áreas são ativadas ou desativadas, nas transições entre as partes de uma música.
Especificamente, 18 músicos e 18 não músicos passaram por um exame de ressonância magnética funcional enquanto ouviam trechos de três obras musicais. Uma delas era a composição “A Sagração da Primavera”, de Igor Stravinsky, tocada por orquestra, outra era o tango “Adiós Nonino”, de Astor Piazzolla, e a terceira era “Stream of Consciousness”, da banda de metal progressivo Dream Theater.
A variedade se dá para garantir uma ampla gama de características acústicas e estilos. “As mudanças nas dinâmicas de tempo, ritmo e motivos proporcionaram uma estrutura ideal para estudar como o cérebro detecta, antecipa e responde às transições musicais. Por exemplo, se você considerar as frases de Piazzolla e de Dream Theater, elas são mais bem definidas e apresentam uma forma estruturalmente mais coesa em termos de seções musicais e motivos do que as do trecho de Stravinsky, que tem frases mais irregulares e fragmentadas, com ritmos mais complexos, texturas variáveis e ambiguidade harmônica”, explica à reportagem Iballa Burunat, primeiro autor do estudo e pesquisador de pós-doutorado na Universidade de Jyväskylä.
Como resultado, os pesquisadores viram que músicos e não músicos respondem de maneira perceptivelmente diferente a essas transições. Não músicos entendem as transições musicais, essas situações-limite, utilizando áreas do cérebro mais generalistas, como aquelas ligadas ao processamento auditivo e à cognição. Músicos, por sua vez, ativam especificamente áreas ligadas à prosódia e à sintaxe musical.
Por exemplo, a área de Broca direita e o opérculo rolândico esquerdo são particularmente engajados em músicos, o que indica provavelmente uma simulação mental de ações como tocar instrumentos ou cantar. E há maior integração com regiões associadas à chamada “memória de trabalho”, o que indica o quanto aquelas informações podem estar numa espécie de fila preferencial de evocação num futuro próximo. Os não músicos, por sua vez, têm respostas mais amplas e difusas.
Os músicos avaliados tinham, em média, 14,4 anos de treinamento musical. Faz sentido pensar que o cérebro deles se reorganizou, passando a ter uma resposta especializada e eficiente na percepção e digestão das transições musicais.
Existem algumas teorias para tentar explicar o impacto que a música exerce sobre nossas emoções e o motivo pelo qual nosso cérebro teria evoluído para isso, afirma a neurocientista, musicista e cantora Julie Wein, que não participou do novo estudo. “Uma delas diz que a música seria uma ferramenta de comunicação importante entre a mãe e o bebê antes de o bebê aprender a falar. Isso faz sentido se observarmos que a primeira coisa que nosso sistema auditivo consegue entender são melodias. E que, no início da vida, a fala é interpretada pelo bebê como um tipo de música.”
“Outra teoria diz que a música seria uma ferramenta importante para a coesão de um grupo social, aumentando comportamentos pró-sociais e de cooperação dentro de um grupo. Um dos fatos que corrobora essa teoria é a capacidade de seres humanos se moverem juntos em sincronia com a música, coordenarem ações, fazerem música em conjunto e se unirem para assistir a uma mesma performance musical [independentemente de divergências ideológicas individuais]”, diz Wein.
Ainda que de forma incipiente, tamanha conexão entre quem somos e a música que ouvimos já se desdobra na saúde. “Já houve trabalhos investigando apraxia e alguns tipos de afasia, que causam problemas para articular palavras e frases. Foram usados elementos musicais exagerados para aumentar a prosódia da linguagem, o que parece facilitar a produção e fluência”, diz Burunat. “Isso pode abrir possibilidades para a criação de ferramentas de musicoterapia que auxiliem na recuperação da linguagem e reabilitação cognitiva.”
Pessoas com alzheimer também podem ter música como aliada terapêutica. Isso acontece porque as memórias musicais tendem a se formar num contexto emocional, residindo em áreas mais primitivas e preservadas do cérebro, explica Wein. “Esse é um dos principais motivos que ajuda a explicar por que os clássicos ou aquelas músicas que ouvimos na infância têm uma capacidade tão impressionante de remeter a boas memórias e causar sensações boas. Há pacientes com alzheimer que não conseguem nem lembrar mais dos próprios filhos, mas muitas vezes permanecem com a capacidade de lembrar músicas que gostavam de ouvir na juventude.”
A chave para destravar o potencial terapêutico da música é exatamente discernir o que é música e o que é linguagem para o cérebro. São coisas diferentes, mas que utilizam substratos cerebrais significativamente sobrepostos. Para isso, primeiro é preciso estabelecer um padrão básico das respostas da circuitaria cerebral em indivíduos saudáveis, dos mais diversos contextos sociais e demográficos, para então avançar na compreensão do cérebro de pessoas com algum tipo de déficit ou transtorno e eventuais tratamentos.
Questionado sobre a possibilidade de diferenças culturais interferirem na forma como as pessoas escutam e processam a música, Burunat defende que o aparato biológico é comum a toda a espécie. “Por exemplo, agrupamentos frasais na linguagem, transmitidos por meio de pistas prosódicas como entonação e ritmo, são consistentes entre culturas e idiomas devido a mecanismos neurais compartilhados.”
“A música é profundamente enraizada na experiência humana, independentemente da cultura, onde os processos cognitivos fundamentais envolvidos permanecem consistentes. É graças a essa estrutura cognitiva compartilhada que nós, humanos, somos capazes de entender e apreciar formas musicais diversas, apesar das diferenças culturais na expressão e prática musical. Certamente, seria fascinante estudar o processamento de limites em diferentes tradições musicais e populações, e ver se isso corrobora a ideia de um processamento universal.”
Há outros fronts em andamento para entender de maneira mais ampla como a música é percebida e nos impacta, explica Julie Wein. Há estudos que investigam como acordes maiores e menores agem sobre o cérebro, averiguando como a mudança de uma única nota altera a percepção emocional do som. Outros observam o cérebro durante o processo de composição musical, mostrando que a comunicação entre os dois hemisférios cerebrais é importante para a criatividade. Também há os que investigam os correlatos cerebrais das dimensões emocionais da música, como alegria, tensão, tristeza, ternura, encantamento, serenidade, transcendência, força e nostalgia. Outros, por fim, investigam como nosso gosto musical é modulado e como sentimos prazer com a música.
“Hoje enxergo música e cérebro como dois assuntos completamente interligados. Se todos soubessem como a música é um exercício completo para o nosso cérebro, ela seria uma disciplina indispensável em todas as escolas do mundo”, diz a musicista e neurocientista.
Fonte: Folha de São Paulo